sábado, 13 de julho de 2013

Direito ao esquecimento na sociedade da informação

Realizou-se no último mês de março, em Brasília, a VI Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciário (CEJ), do Conselho de Justiça Federal, dirigido naquele mês pelo ministro João Otávio Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O evento, que reuniu juristas de todo o país e do exterior na Capital da República, aprovou o enunciado de número 531, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

Este enunciado, de redação um tanta vaga, tem despertado polêmica nos meios jurídicos e também na imprensa.

Alguns advogados, ligados aos grandes grupos de comunicação, têm se manifestado contrariamente ao texto aprovado. Sustentam que seria a volta da censura no país, o que é expressamente vedado pela Constituição Federal. Afirmam também que haveria o risco de se tentar apagar a própria história com isso.

Nosso entrevistado é o desembargador federal Rogério de Meneses Fialho Moreira, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, sediado em Recife (PE) e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPB, em João Pessoa.

Coordenou a Comissão da Parte Geral do Código Civil durante a VI Jornada, grupo de trabalho integrado por professores, juristas, magistrados, membros do Ministério Público e advogados, que debateram e aprovaram a polêmica proposta do enunciado.

- O que exatamente significa esse direito ao esquecimento? Seria um direito de apagar qualquer referência à uma pessoa ou a um fato nos meios digitais?

- Na sociedade de informação em que vivemos, até mesmo os atos mais simples e cotidianos da nossa vida pessoal podem ser divulgados em escala global numa velocidade impressionante. Uma foto tirada, por exemplo, em momento de intimidade, propaga-se através das mídias sociais com impensada rapidez. Fatos praticados na juventude, e até já esquecidos, podem ser resgatados - isso passou a ser muito comum após a digitalização de jornais e arquivos antigos - e inseridos na “rede”, vindo a causar novos danos atuais e até piores, além daqueles já causados em épocas pretéritas.



- Mas antes da internet, o cidadão também não poderia ter sua intimidade devastada pelos meios tradicionais de informação?

- Hoje, os danos causados por informações da esfera privada, falsas, ou mesmo verdadeiras, e que são veiculadas na internet, são potencialmente muito mais nefastos do que na época em que a divulgação da notícia se dava pelos meios tradicionais de divulgação. Uma retratação publicada em jornal ou revista podia não ter a força de recolher as “penas lançadas ao vento”, mas a resposta era publicada e a notícia mentirosa ou injuriosa jazia nos arquivos do periódico. Raramente era ressuscitada para voltar a perseguir a vítima - apenas quando se cuidava de um fato de grande repercussão criminal, social ou política.



- Atualmente, por mais insignificante que seja um fato, sob o ponto de vista social ou jornalístico, ele pode ser recuperado rapidamente através dos sites de busca na internet. E a notícia volta a provocar na vítima angústia, dor, sofrimento, mágoa, de modo reiterado, continuado e, portanto, muito mais grave...

- O enunciado procura dar efetividade ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e às regras que asseguram a proteção da privacidade e da intimidade. São direitos ínsitos à personalidade do ser humano e estão resguardados expressamente no Código Civil de 2002. Quem se sentir lesado em seus direitos personalíssimos poderia pleitear a eliminação da informação, não só dos meios de comunicação em mídia física, mas também do próprio mundo virtual.



- A ideia de um direito ao esquecimento surgiu no Brasil?

- Essa teoria surgiu inicialmente na Espanha, havendo hoje projeto de diretiva sobre a matéria na União Europeia. Seria corolário do direito à privacidade, o right to be let alone, ou seja, um direito a permanecer sozinho, esquecido, deixado em paz. Um escudo a proteger o cidadão da invasão pelas mídias sociais, blogs, provedores de conteúdo ou mesmo buscadores de informações, da sua privacidade, num estágio mais avançado em relação a fatos públicos, mas relativos ao seu passado.



- Isso não constituiria censura?

- Em princípio não. Bem medido e aplicado, o direito ao esquecimento não constitui censura ou ofensa ao princípio da liberdade de manifestação do pensamento. Na verdade, deve-se fazer a ponderação entre o interesse público na divulgação de fatos relevantes no ambiente informacional e o resguardo ao direito à intimidade e proteção à dignidade da pessoa e à inviolabilidade pessoal. São os abusos que devem ser eliminados e não a mera expressão da opinião.



- Como surgiu esse enunciado? Ele tem sido criticado por vários juristas, inclusive por advogados dos grupos de comunicação.

- O enunciado foi proposto pelo promotor de Justiça no Rio de Janeiro, professor e doutor Guilherme Magalhães Martins, da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Houve grande discussão sobre o tema e sobre a conveniência e oportunidade de se editar um enunciado a respeito. Para uns, dentre os quais eu me alinhei, haveria necessidade de um maior amadurecimento e de um certo consenso na doutrina antes de se erigir em enunciado uma determinada matéria. Os enunciados das Jornadas de Direito Civil, embora não tenham qualquer força vinculativa, têm grande autoridade doutrinária, servindo de referência interpretativa e constituindo fundamento para muitas decisões judiciais. Mas a maioria dos professores presentes entendeu o contrário. A redação genérica serviu exatamente para que os aplicadores do Direito possam fazer a distinção entre o que é assunto atinente à privacidade, e outros em que há interesse público, histórico ou jornalístico legítimo. Ele é importante para incrementar a reflexão sobre os limites do direito à privacidade.



- Os críticos do enunciado dizem, inclusive, que a sua aplicação colocaria em risco os registros históricos. Essas críticas são pertinentes?

- Quanto a colocar em risco a história, há evidente exagero na afirmação. De acordo com a própria fundamentação do enunciado, o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Esse direito, que estaria implícito na regra legal que assegura a proteção da intimidade, da imagem e da vida privada, bem como no princípio de proteção à dignidade da pessoa humana, garantiria apenas a possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos. Assim, o enunciado traça apenas uma diretiva geral de interpretação. Não é qualquer informação negativa que enseja a sua eliminação do mundo virtual. É uma garantia contra o que a doutrina tem chamado de “superinformacionismo”.  O enunciado é  importante para a discussão do tema, mas ainda há muito espaço para o amadurecimento do assunto, de modo a serem fixados os parâmetros para que seja acolhido o “esquecimento” de determinado fato, com a decretação judicial da sua eliminação das mídias eletrônicas. Tudo orientado pela ponderação de valores, de modo razoável e proporcional, entre os direitos fundamentais e as regras do Código Civil de proteção à intimidade e à imagem de um lado e, de outro, as regras constitucionais de vedação à censura e da garantia à livre manifestação do pensamento.



- Qual a força do enunciado? Ele vincula os juízes no momento de proferir a decisão ou sentença?

- Como disse antes, os enunciados têm grande força doutrinária, constituindo importante referência em qualquer decisão sobre o tema nele tratado. São citados em praticamente todos os livros de direito civil, editados no Brasil, mas são apenas um resumo do pensamento da doutrina nacional. Não vinculam as decisões judiciais, nem são produtos da decisão do Conselho de Justiça Federal (CJF), como pensam alguns. O CJF é órgão despido de natureza jurisdicional. É responsável pela supervisão administrativa e financeira da Justiça Federal (de primeiro grau e dos TRFs), mas não julga processos judiciais. As Jornadas de Direito Civil são apenas organizadas pelo seu CEJ, dirigido pelo Corregedor Geral da Justiça Federal. Esse eventos, alguns dos mais importantes da área jurídica em nosso país, reúnem juízes, membros do Ministério Público, defensores, advogados, juristas, os mais importantes professores de direito civil e autores de livros e trabalhos doutrinários do Brasil e do exterior. O enunciado 531 foi aprovado pela comissão encarregada de debater a Parte Geral do Código Civil na sessão plenária, durante a última jornada, realizada em março passado. Tem, portanto, enorme força como fonte doutrinária, até porque não é fruto da opinião de um único autor, mas a súmula do pensamento de grande parte dos civilistas nacionais, que lá estavam reunidos. Penso, assim, que os juízes vão levar em consideração o enunciado 531 no momento de decidir os casos concretos.



- Como os tribunais do país vinham decidindo sobre o assunto, antes da edição do enunciado 531?

- Há precedentes no Brasil que, embora não se refiram expressamente ao direito ao esquecimento, na realidade, tratam do tema. Em alguns julgados, inclusive do STJ, há determinação expressa de que o provedor de conteúdo retire a informação ofensiva, sob pena de responsabilidade solidária com o autor direto do dano. Há outros precedentes em que o pedido não foi acolhido, sobretudo quando se tratava de pessoas públicas, em relação a fatos a respeito dos quais o Judiciário entendeu que não havia fundamento para a eliminação da notícia do mundo da informação eletrônica. Há ainda um julgado interessante da 3ª Turma do STJ, em sessão de junho de 2012, relacionado ao filme “Estranho Amor”. Nesta última ação, pretendia-se que o provedor de pesquisa Google Search eliminasse qualquer resultado de pesquisa em que fosse associado o nome da apresentadora Xuxa a atos de possível pedofilia. O acórdão, da lavra da ministra Fátima Nancy, faz a distinção entre provedores de conteúdo e provedores de pesquisa, decidindo que, estes últimos, realizam apenas busca no universo virtual. Ou seja, apenas indicam o que já existe em outros sites. Assim, não lhe caberia fazer a filtragem do que seria conteúdo ilícito.



- Como seria possível, na prática, assegurar esse “esquecimento”?

- O questionamento é realmente muito interessante. Afinal, a imprensa e a internet, ou seja, a própria sociedade da informação, é produto da evolução cultural da humanidade, e tem memória, assim como o próprio ser humano, não havendo assim uma fórmula milagrosa, um pó do esquecimento ou uma tecla control alt del, capaz de apagar eficaz e inteiramente uma informação do mundo digital.



- Então, como fazer?

- A divulgação ocorre em escala global. Portanto, como retirar a informação do mundo virtual? Sem contar que os sites, provedores, redes sociais, cada vez mais interligados, propalam as notícias inicialmente veiculadas em outras mídias, dificultando a efetivação da medida que determinou o “esquecimento” da matéria, bem como a identificação da origem da informação danosa. O ideal seria que, mediante um mero requerimento da vítima, o provedor de conteúdo, o blog, o webmaster, o buscador ou o administrador da mídia social suprimisse a referência ao fato questionado. Essa solução foi a adotada na Espanha, onde a Agência Espanhola de Proteção de Dados tem orientação no sentido de que “nenhum cidadão que não goze da condição de personagem pública, nem seja objeto de um fato de relevância pública, tenha de se conformar com seus dados pessoais circulando na rede”. Mas, na vida prática, dificilmente a solicitação do interessado seria eficazmente atendida. No Brasil a solução tem sido a via judicial, onde o interessado requer a expedição de ordem para a exclusão da notícia.



- Mas há como se cumprir a decisão?

- O problema reside exatamente nos meios para a efetividade da medida judicial que assegura o direito ao esquecimento. Por exemplo, o provedor Google, quando demandado, alega que o serviço de máquina de busca é prestado pelo Google Inc., nos Estados Unidos, de modo que não estaria obrigado ao atendimento da medida decretada em outro país. Um caso interessante ocorreu em Campina Grande, na Paraíba, onde um juiz eleitoral determinou a remoção de determinada informação que seria ofensiva à honra de candidato, consistente numa paródia com o personagem televisivo “Chaves”. O magistrado não acolheu a justificativa da empresa de busca e determinou a prisão do diretor geral do Google no Brasil, estabelecido em São Paulo. O TSE, por unanimidade, denegou o habeas corpus impetrado.

– O esquecimento, em relação aos atos da vida privada, seria mais ou menos como ocorre na área penal, com um ex-detento em ressocialização?

- A teoria do direito ao esquecimento surgiu exatamente a partir da ideia de que, mesmo quem comete um crime, depois de determinado tempo, vê apagadas todas as consequências penais do seu ato. No Brasil, dois anos após o cumprimento da pena ou da extinção da punibilidade por qualquer motivo, o autor do delito tem direito à reabilitação. Depois de cinco anos, afasta-se a possibilidade de considerar-se o fato para fins de reincidência, apagando-o de todos os registros criminais e processuais públicos. O registro do fato é mantido apenas para fins de antecedentes, caso cometa novo crime e, mesmo assim, a matéria encontra-se no STF, em repercussão geral, para decisão sobre a constitucionalidade dessa manutenção indefinida no tempo. Mas, extinta a punibilidade, a certidão criminal solicitada sai negativa, inclusive sem qualquer referência ao crime ou ao cumprimento de pena. Ora, se assim é, até mesmo em relação a quem é condenado criminalmente, não parece justo aos defensores do direito ao esquecimento, que os atos da vida privada, uma vez divulgados, possam permanecer indefinidamente nos meios de informação virtuais. Essa é a origem da teoria do direito ao esquecimento, consagradora do right to be let alone.



– Aplicando-se o enunciado 531 no caso de crimes, o seu autor, depois de cumprida a pena, teria o direito de “apagar” o fato dos registros da internet, ou mesmo de impedir a volta da sua menção nos meios de comunicação?

- No campo criminal, a reabilitação apaga completamente os efeitos do crime cometido. Mas no mundo dos fatos, não se pode negar que o evento ocorreu. Quando o crime foi de repercussão midiática, ainda mais difícil se torna a solução. Muitas vezes o fato ganha repercussão de tal monta que se torna parte da história ou ainda inspira produção literária e cinematográfica. Os provedores de pesquisa na internet poderiam, por exemplo, bloquear a menção ao nome de Ronald Biggs quando a busca demanda a frase “assalto ao trem pagador”? O nome do coronel Ubiratan Guimarães, que restou absolvido e hoje é falecido, poderia ser suprimido das matérias jornalísticas a respeito do julgamento, dias atrás, de outros policiais pelo chamado “massacre do Carandiru”?  Os réus condenados na ação principal atinente ao furto ao Banco Central, em Fortaleza, após dois anos do cumprimento da pena, poderiam pleitear a retirada de seus nomes de toda a sociedade da informação, quando até mesmo um filme com atores consagrados nacionalmente foi feito a respeito do episódio? A resposta, evidentemente, seria negativa. Nessas hipóteses, o direito à informação e à preservação da história deve ter a primazia em relação ao resguardo da imagem dos envolvidos, pois não se trata de fatos atinentes à privacidade ou à vida íntima.



- Então a aplicação do enunciado 531 não pode ser generalizada?

- A aplicação não pode ser automática ou simplista, como pensam alguns. A decisão depende da análise de cada caso, não sendo a hipótese de aplicação do “esquecimento” em relação a certos fatos criminosos, pois, em princípio, na maioria das vezes, mantém-se o interesse jornalístico e de informação. O enunciado não pode ser aplicado genericamente nem em relação a crimes nem no que tange a fatos históricos ou mesmo da vida social, desde que significativos. E repito: o resguardo à privacidade não pode apagar a história nem pode tolher o direito da imprensa de divulgar, de modo contextualizado, fatos relevantes e de interesse público. 

Fonte:
http://brasiliaemdia.com.br/component/content/article/148-edicao-845/1578-direito-ao-esquecimento-na-sociedade-da-informacao

Nenhum comentário:

Postar um comentário